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domingo, 9 de outubro de 2016

Metanoicos


Ontem fui a mais um encontro dos colegas da minha turma do Colégio Santa Cruz, os "79'ers". Já sobrevivemos aos primeiros, recheados pelo espanto do que os anos fizeram a uns e outros, ou quanto aos rumos da vida daqueles que convivemos adolescentes. Lá se vão 37 anos. Desde o primeiro encontro, três anos atrás, no qual éramos uns duzentos, foram várias festas, happy-hours, e uma infinidade de encontros em pequenos grupos. De lá para cá, temos sonhado com ações conjuntas para repensar a vida, a força das amizades, os desafios profissionais e pessoais do momento. E pensar no que podemos fazer juntos, ações que tenham sentido, tanto individualmente quanto para as comunidades da qual fazemos parte: Projetos sociais? Para a terceira idade? Parcerias profissionais? Estudo de conteúdos para conhecer melhor os desafios do mundo atual e os desafios da fase de vida em que estamos? Foi esse o foco do encontro de ontem, resultado do trabalho de uma comissão voluntária e aberta para organizar os "Encontros de Conteúdo" (há também comissões para os"Grupos com Propósito" e de "Trocas Profissionais").

O encontro de ontem "54! E agora?" teve duas convidadas especiais e estudiosas desse momento de vida em que estamos. Helena Albuquerque e Ana Lúcia R. Pandini levaram para a grande Roda contribuições da Psicanálise, da Psicologia Analítica e de suas pesquisas e experiências no consultório, dando elementos para a conversa que se seguiu. Menopausa, tabus, sexualidade, pais idosos, filhos saindo de casa para tocar a própria vida foram alguns dos temas que circularam. Ana Pandini falou da Metanoia, tema de sua tese de doutorado, causando um certo zum-zum-zum na "turma do fundão", onde eu estava por ter chegado atrasada (costumo ficar na fila do gargarejo, tanto para ouvir melhor, quanto para evitar que minha cervical, já um tanto danificada pelos anos, seja projetada para a frente - o que as sessões de Pilates tentam "consertar"). "Ela tá falando que somos paranoicos!", ouvi. Ri e brinquei também. É só juntar amigos de adolescência, que voltamos àquela fase de vida na qual nos conhecemos. Uma delícia aquele tempo! E também o de agora, com seus ganhos e perdas! (pelo menos é o que eu acho). Aliás, Helena Albuquerque fez um paralelo entre a adolescência e a fase da menopausa. Contou de pesquisas que mostram quanto ajuda as mulheres nessa fase de vida conversar com as amigas... Observei, aproveitando a visão distante que o "fundão" facilita, o que  estávamos fazendo ali: mulheres na fase de menopausa conversando em Roda, mas não só com as amigas que passam os mesmo perrengues. Também com os "meninos", nossos amigos grisalhos. E também com alguns maridos e esposas que estavam presentes. Na realidade, homens e mulheres vivem os desafios da menopausa, senão na própria pele, na lida diária com a vizinha de cama, mesa e teto.

Se a Metanoia é uma a mudança na maneira de pensar para um novo modo de viver, acho que estamos no caminho certo (mesmo que inicial) para enfrentar essa nova etapa, pós-54. E que se passa dentro de cada um,  mas é facilitada pela conversa entre pares. Observo nas várias ocasiões de nossos encontros, um movimento se dando, nada linear (e por vezes até bem conflituoso). Um movimento de mudança na maneira de nos relacionarmos com nossos amigos que já estão bem para lá da pós-adolescência. Não me lembro se foi a Ana ou a Helena que ontem se referiu a essa nossa etapa de vida como "segunda fase adulta". Acho que ontem estávamos um tanto metanoicos. E em outros encontros também, quando, por exemplo, alguns que sofreram Bullying de colegas, puderam falar disso aos seus algozes. Nada como mudar a perspectiva do olhar. Dar muitas cabeçadas. Mudar de vida. E envelhecer. Não temos muita alternativa a isto. A não ser, fazê-lo junto, e da melhor forma possível.

Na rica conversa de ontem, um depoimento me marcou muito. Falávamos de enfrentar a morte dos pais, da finitude. Foi aí que um de nossos amigos médicos contou o que viveu ao trabalhar na UTI com crianças, vítimas de câncer. Enquanto seus pais choravam, com a perspectiva da morte próxima do filho, ou da filha, a criança dizia não entender porque eles estavam tristes, pois era ela que ia morrer e ela estava feliz com a vida, vivendo-a toda. Isso provocou no médico um novo olhar, uma nova visão sobre a finitude. Acho que seus pequeninos pacientes, na altura de seus seis ou oito anos, lhe ensinaram sobre a metanoia. E agora ele nos transmitia essa sabedoria, que não tem idade, mas que pode se alastrar pela conversa e escuta atentas. 

Já estou eu a falar de morte e do morrer novamente neste blog. Então me rendo: vão aqui mais algumas linhas sobre o meu pai. Ele me dizia: "o Brasil é um país maravilhoso, pois não tem terremotos, guerras ou perseguição racial". Ele repetia e repetia isso, incansavelmente (parte porque seu pai escolheu o Brasil para viver exatamente por esses motivos e parte porque ele esquecia que já tinha dito isso várias vezes, de modo que eu ouvia e ouvia). Hoje, ao ler o jornal de manhã, sua descrição do Brasil ainda ecoava, mas com um acréscimo: "...e nem furacões".

Sim, temos muitos problemas no Brasil. Quem sabe uma imensa metanoia, a se disseminar pelas conversas e comunidades de todos os tipos, possa transformar esse País. E transformar cada um de nós. Aliás, é por aqui que começa, não é?

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Aprender a viver e a morrer, graças aos amigos


Quando aprendi a ler, ganhei de meus pais um abajur. Desde então, antes de dormir, lia. Meu pai, após pedir uma vez para eu apagar a luz, vinha conferir olhando embaixo da porta para ver se estava tudo escuro (acordar cedo para ir à escola era sempre difícil e ele queria me colocar na linha). Descobri pouco depois das primeiras desobediências que se eu colocasse uma lanterna por debaixo das cobertas e continuasse a leitura escondida, driblava a vigilância. Só lhe confessei isso quando ele já era idoso. Nessa altura, eu não corria mais o perigo dele terminar com minhas conversas e escritas noturnas. Pelo contrário, ríamos -ou chorávamos - de episódios de nossas vidas. Naquela época, escrevíamos sua história de vida, de modo que fui descobrindo alguns episódios que não conhecia de sua vida. Foi num desses momentos que descobri: herdei dele esse tipo de malandragem, ou melhor, a 'habilidade' de dar a volta na autoridade, como fez ele na infância para escapar da autoridade de meu avô e este, da de Hitler. (falei dessa sua traquinagem no post de agosto de 2013, em homenagem ao Dia dos Pais). Ri sozinha ao escrever as linhas acima... Como é bom achar uma desculpa ou um culpado para aquilo que está guardado em nosso lado sombrio, não é? 

Acho que a hora de dormir é como uma pequena morte, uma entrega, um desligar-se do mundo de cá, que é maravilhoso, com seu universo de possibilidades e leituras noturnas (uma 'morte', que apesar de doce, adio sempre). Quando vencida pelo cansaço, encontro o mundo de lá, também maravilhoso, com o imenso universo onírico, que vira matéria de conversas com os amigos junguianos ao meu redor. Continuo com dificuldade de apagar o abajur. E de acordar de manhã. Os livros foram meus primeiros amigos.

Danièle Renauld, em seu texto sobre o trabalho de luto, citado no post anterior, fala que uma das dificuldades da fase de luto é que ele nos remete a duas realidades simultaneamente: a perda da pessoa querida e a realidade de nossa própria morte. É sobre isso que fala Stanley Keleman, um "amigo" recente, em seu livro Viver o seu morrer. Stanley ajuda a compreendermos o significado de nossas pequenas mortes, vividas diariamente, como forma de nos dar condições de enfrentá-las sem medo ou morbidez. Já na abertura do livro, ele diz: "Viver é movimento. Uma outra palavra para isto é processo. Viver o seu morrer é a história do movimento de sua vida". Vida feita de movimentos de expansão e contração permanentes. A vida é pulsante, sempre. A expansão é a parte do movimento que nos envia para além de nossas barreiras físicas, em direção ao mundo da interação social, por exemplo, enquanto que o movimento de contração, de recolhimento, nos leva para dentro, física ou emocionante falando, para a introspecção. 

Em outro livro seu, Anatomia Emocional, Stanley também contribui para o trabalho de luto e para a compreensão do morrer. E do viver. Diz ele: "A vida é um evento inteiro e não uma série de subsistemas, e todas as formas de vida são interligadas, brotando de uma única matriz comum (...). Cada um de nós é uma cadeia de fatos vivos, uma rede organizada, um microambiente que compõe um macro-organismo". Stanley é um dos amigos que me acompanham nas reflexões sobre o trabalho de luto de meu pai, retomados agora pela fase delicada da vida de minha mãe, que remete a meu próprio morrer. As reflexões desses amigos recentes, Danièle e Stanley, me ajudam a olhar para dentro, identificando minhas emoções. E para fora, buscando a compreensão dos processos de vida do morrer para além da dor pessoal. Também como um pulsar.

E por falar em amigos, não posso deixar de me referir ao Marco Spinelli, que escreveu recentemente o belo texto "Solve e coagula" em seu blog, que, sincronicamente, conversam com essas reflexões sobre o pulsar da vida. Junguiano, Marco fala do conhecimento dos alquimistas e possibilita sua compreensão oferecendo vários exemplos, desde o vivido por Sir Percival em sua busca do cálice sagrado, até alguns bem recentes, como o vivido por Diego Hipólito em sua luta, coroada na última Olimpíada. Posso emprestar esse meu amigo: http://blogdomarcospinelli.blogspot.com.br/.

Nesse movimento de partilhas, reflexões sobre o viver, envelhecer e morrer, António Nóvoa lembra um de seus amigos artistas, o surrealista Cruzeiro Seixas, que "lhe" disse: "Quantos anos de dura aprendizagem são precisos para um homem aprender a viver?”. Num congresso sobre o envelhecimento, António, que à época era reitor da Universidade de Lisboa, formula: "quantos anos de dura aprendizagem são precisos para um homem aprender a morrer?”. Ele acentuava ali a importância da construção dos conhecimentos com base nas pessoas e nas suas experiências, e a responsabilidade das universidades de valorizar, também, este autoconhecimento, pois “ele é a base necessária em que assenta qualquer processo de formação de um adulto”. 
Stanley é amigo recente, mas os livros de Jung me acompanham há décadas. Há alguns meses fui visitar o “seu” lago, em Küsnacht, na Suiça, numa reverência ao que ele me ensinou. E ensina. Este é o poder dos grandes mestres: transcendem a própria morte. 

Stanley "me" contou, em seu livro sobre o morrer,  uma história do Jung, que teria recusado um paciente , dizendo que não estava mais atendendo pacientes novos, pois estava se preparando para morrer. "Isto aconteceu cerca de um ano antes da morte de Jung. A partir dessa história, reconheci que Jung conhecia bem sua vida. Ele precisava de tempo para deixar que seu processo chegasse ao seu final. Ele sabia como estar com sua vida. Ele sabia como fazer o seu fim e viveu este fim completamente" (p. 46).

O que me ajuda a viver (e a morrer), diariamente, é essa rede de amigos. E a dos amigos deles.