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segunda-feira, 22 de agosto de 2016
Transições de vida e trabalho de luto
Domingo passado foi Dia dos Pais. Minha homenagem foi silenciosa. Reli o post escrito neste blog, há exatos três anos, quando ainda estava em processo de luto. E refleti sobre o que se seguiu de lá para cá. Interna e externamente. Quantos amigos perderam seus pais, sogros. Muitos cuidaram (ou estão cuidando) de seus pais idosos. Alguns perderam irmãos e até filhos nesse período. Pude estar com alguns deles nesse pedaço do caminho. Aprendi com a morte do meu pai o quanto é importante sentir-se acompanhado nesse momento. A presença, conversas ou mensagens de vários tipos podem ser um presente: fazer com que nos sintamos parte de algo maior, de uma comunidade, onde todos, mais cedo ou mais tarde passam por perdas como aquela. Um elo para além do que palavras podem expressar. Uma perda e um ganho simultâneos. Por outro lado, para além dessa acolhida recebida das pessoas que nos acompanham nesse momento, há um trabalho a fazer. Um trabalho interno. E intransferível.
Como parte desse trabalho, usei a escrita como instrumento, como em tantas outras transições de vida. A escrita pode ser de enorme ajuda nesse trabalho do luto. Percebo que meu primeiro post sobre esse assunto foi em 07/05/2012. Além dos posts nesse blog, acabei escrevendo um capítulo do livro "Entre na Roda!", contando o processo daqueles sete anos de acompanhamento de meu pai, com as estratégias que ia criando para dar suporte aos desafios que apareciam, dos mais diversos tipos. Suporte a ele, a mim, e aos que estavam ao redor, participando daquela rede de cuidado.
Domingo passado, ao refletir sobre o que vivi durante o luto, acabei me lembrando do material de um congresso que participei muitos anos atrás sobre o tema do acompanhamento nas mais diversas situações de vida e áreas de atuação, profissional ou não (L´accompagnement et seus paradoxos: questions aux usagers, practiciens, scientifiques et politiques). Na ocasião, interessava-me o acompanhamento da formação dos professores por meio das Rodas de partilha. Foi sobre isso que fiz minha apresentação no congresso. Lembro-me de algumas que assisti, marcantes. Naquele domingo, vasculhando nos Anais, deparei-me com o texto "Transições de vida e trabalho de luto", apresentado por Danièle Renault, da Universidade François Rabelais de Tours. Esse texto me fez boa companhia na homenagem silenciosa e retomada do que vivi. Encontrei ali elementos para uma melhor compreensão do que ela chama de 'trabalho do luto', e de seu acompanhamento, oferecendo um olhar sobre as experiências desse período como experiências formativas, no sentido que nos convidam a mudar de olhar sobre nós mesmos, sobre os outros, e sobre o mundo.
Esse trabalho de luto faz uma ligação entre o passado e o futuro. Ele permitirá a integração do passado, como presença interior, com o sentido que cada um dará à sua própria história e aos acontecimentos que a construíram. A questão do sentido é essencial a esse trabalho, diz a autora. Viktor Frankl, já citado neste blog, certamente concordaria. E essas ligações de sentido, na história de vida, ligando o passado, o período de transição de vida, que é o luto vivido de maneira presente, e no presente, permitirão a continuidade da vida, com novos projetos, também preenchidos de sentido.
Tempo é a palavra que rege a fase do luto. Há etapas, mas os caminhos são sempre diferentes, pois dependem, ao mesmo tempo, da relação única que a unia a pessoa àquela que se foi, seus recursos internos (sua capacidade de fazer face, sua relação ao mundo) e externos (seu meio familiar e sócio-profissional). E tempo é algo escasso na vida de nossa sociedade atual. "Quem tem o tempo dar um tempo hoje? A indisponibilidade de cada um contribui, certamente, à inflação de demandas da ajuda de profissionais", diz a autora.
Um trabalho de compreensão daquilo que ela está a viver nessa fase de transição de vida é uma das necessidades da pessoa em luto. Mas também o sentimento de ser compreendido. "Ter atravessado essa prova que o outro vive parece ser importante em matéria de acompanhamento, pois ter sido 'tocado' onde o outro será 'tocado' cria um espaço comum que permite o encontro". Há uma 'função de suporte', exercida por familiares e também pelo meio social, como pelos amigos. Esse suporte social permite romper um isolamento e restaurar ligações sociais, muitas vezes abaladas em situações de crise, cuja elaboração se dá também na interação com os outros.
Danièle destaca também três estratégias de acompanhamento de pessoas na fase do luto, para ajudá-las a reconstruir sua identidade, reorganizar sua vida material, social ou afetiva, podendo ser complementares ao acompanhamento da família e amigos.
A primeira é um acompanhamento individual, onde a pessoa poderá exprimir seus sentimentos sem o medo de ser julgada, sem que o que diga chegue às pessoas de sua família, por exemplo, podendo reconhecer suas emoções e sentimentos, redefinir sua relação à pessoa perdida, ao mundo e a si mesma.
A segunda é um grupo de suporte. Um grupo de pares para trocar experiências sobre a mesma problemática, coordenado por um profissional. No caso desses grupos, ninguém está só a viver o que vive e nem está lá, unicamente, para receber ajuda, mas também para participar no suporte dos outros membros do grupo, o que em si dá uma nova dimensão ao que ela vive no luto, e na experiência do grupo.
A terceira é ter uma obra como testemunha, isto é, trabalhar sobre um objeto-mediador (escrita, pintura, escultura ou desenho, como o de mandalas). Uma obra a ser depositária das emoções, dos sentimentos e do vivido. O contato com esse objeto-mediador, entre a pessoa e sua dor, permite que ela 'se coloque em ação', enquanto trabalha sobre a matéria, criando um espaço transicional.
Percebo que meu trabalho de luto se deu em espiral, redimensionando a cada nova volta (e a cada novo texto), os sentimentos e os sentidos extraídos, ampliando-os para novas maneiras de enfrentar perdas. Não só pela morte ou afastamento de pessoas, mas também de situações de vida, como a da vitalidade física dos anos da juventude. Estamos a morrer um pouco a cada dia.
Entretanto, podemos olhar para a vida, e para a morte, de maneira diferente. Podemos estar a construir, um pouco a cada dia, uma grande obra (também trabalhosa, como tudo de valor): uma imensa LIBERDADE, no sentido que lhe dá Viktor Frankl: a de poder escolher nossa atitude ante qualquer circunstância dada.
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Suporte e cuidado em rede
Tenho pensado sobre o suporte que temos e damos uns aos outros. Como nos acompanhamos pelos labirintos de nossas vidas? No caso das pessoas que, profissionalmente, cuidam de outras, como se dá (ou poderia se dar) esse suporte?
Lembro-me do papel importantíssimo em minha formação que teve o "grupo da Madalena Freire" (já citado em posts atrás), por meio do acompanhamento das práticas de educadores que lidavam com grupos de crianças, jovens ou professores nas escolas. O incentivo à reflexão e a existência de uma escuta atenta nos dava um suporte para nossas práticas, ao mesmo tempo em que aprendíamos pelo processo de autoformação partilhada naquele grupo.
O "grupo da Ivani Fazenda", formado por mestrandos e doutorandos, teve um papel semelhante ao da Madalena: nós nos acompanhávamos em nossas pesquisas, levantando questões, debatendo pontos de vista sobre os textos teóricos que faziam parte da bibliografia e os textos produzidos por cada um. Ali, junto ao suporte para as pesquisas individuais, vivíamos encontros de almas e de afetos. A prática do grupo conversava com as teorias que discutíamos. E as teses e dissertações iam sendo escritas com aquele suporte.
Os "Grupos Balint" foram criados em meados do século XX, originalmente para médicos. Eram grupos de formação e de pesquisa a partir de casos clínicos apresentados pelos participantes (grupo de 8 a 12 médicos, em encontros semanais). O objetivo não era psicoterapêutico (apesar de serem conduzidos por um psicanalista), nem de buscar soluções para os problemas que enfrentavam, mas de aprender a escutar os outros e si mesmo, a partir da relação médico-paciente. Pouco a pouco esses grupos serviram de inspiração para muitos tipos de trabalhos com grupos de diversas áreas, baseados na análise das práticas, e conduzidos por profissionais de diferentes áreas e abordagens, não mais, necessariamente, por psicanalistas.
Na área da Educação, por exemplo, Jeanne Moll, conta de seu trabalho com professores, a partir da análise das práticas, le groupe de soutien au soutien, cuja ideia é dar um suporte àqueles que dão suporte. Esses grupos foram criados por Jacques Lévine e inspirados nos trabalhos de Michael Balint. Jeanne Mooll descreve o trabalho de acompanhamento dos professores, centrado na dimensão relacional dessa profissão, como "uma dinâmica de trocas inter humanas, onde aquele que recebeu se engaja a dar, por sua vez, para que a reflexão prossiga, se enriqueça e não se perca". Através as trocas no grupo, as situações descritas ganham inteligibilidade, "porque podemos ver melhor a partir dos diferentes pontos de vista e a troca dá asas à inteligência" (In 'Le groupe de soutien au soutien', Les Cahiers Pedagogiques nº 393, avril 2001).
Esse era também o espírito que animava a "Roda dos Professores de Roda", um grupo de professores de uma escola, que aprendiam a conduzir Rodas com seus alunos através da experiência de serem, eles mesmos, participantes de uma Roda, conduzida pela coordenadora pedagógica da escola. Descrevi essa experiência em Rodas em Rede.
Todas essas são práticas de cuidado. E de inclusão da singularidade. Como disse Leonardo Boff, em seu livro Saber cuidar, trata-se de uma ética do humano, "uma maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer", um modo-de-ser-essencial. Algo que já dizia Heidegger, em Ser e Tempo, "Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser humano". Também a belíssima abertura das Olimpíadas no Rio, nesta semana, falou disso. Profundidade, beleza e diversidade, trazendo uma mensagem. Para mim, ficou a de cuidarmos do Planeta e de cada um, incluindo o Outro, o diferente (principalmente o que nos incomoda), e dando-nos suporte, uns aos outros, numa rede.
Proponho um duplo exercício para alimentar essa rede: olhar para trás e pensar: que grupos (ou mestres) me deram suporte no processo de tornar-me o que sou (como pessoa e profissional)? E... o que faço para passar adiante o que recebi?
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