domingo, 11 de agosto de 2013

Dia dos Pais


Meu pai era um curioso. E voltado para as pessoas, ajudando-as no que podia. Ele se metia em diferentes áreas, certo de que poderia aprender. E ajudar. Às vezes, exagerava. No final da vida, com  a memória falhando, dava dinheiro para os mendigos na rua, que riam dele, pedindo dinheiro seguidamente, pois percebiam que ele não se lembrava de ter acabado de dar. Eu tentava explicar e dissuadi-lo. Não sei se ele não acreditava ou se sua vontade de ajudar era maior do que qualquer outro argumento. Continuava dando.

Não deve ter sido uma criança fácil. De enorme inteligência, deve ter aprontado muito.  Histórias que eu só soube quando já idoso, quando as lembranças do passado eram mais vivas do que as recentes, como a da festa do limpador de chaminés (nunca entendi o que era isso, nem ele sabia mais explicar). Nessa ocasião, seu pai insistia que ele teria que ir à festa. Ele teimava que não iria. Até que o pai perdeu a paciência e partiu para a surra. Mas o esperto correu atrás da mãe e disse: “que feio, um homem tããão grande (e meu avô era, de fato, um homem grande), batendo numa criança tããão pequena...”. E assim driblava a figura de poder. Seu pai, também inteligente, fazia o mesmo. E assim escapou de Hitler. Exercícios de astúcia, inteligência, criatividade. Sintonia com as condições do presente para conseguir o que queria para o futuro, próximo ou distante. Meu avô queria levar a família para outro continente e livrar as gerações futuras do que ele julgava que seria, sempre, motivo de perseguições: o fato de ser judeu. Viajou o mundo e escolheu o Brasil, pois aqui via a convivência de diferentes raças. Mesmo assim, converteu-se ao Catolicismo assim que chegou com todos. Era determinado. Assim como o filho, que não foi à tal festa.

Meu pai se entregava de corpo e alma ao que acreditava. Se precisasse, escondia seus feitos.  Era teimoso (ou perseverante?). Talvez tenha aprendido isso com seus pais que conversavam escondidos, sempre no carro, porque diziam que as paredes tinham ouvidos. E tinham. Foram muitas as artimanhas para escapar da Alemanha, sempre escondendo algo. Meu pai contava que um dos planos de fuga incluía enviar dinheiro dentro de um exemplar do jornal do dia para o hotel Haus Holub, na Checoslováquia em nome de um hóspede inexistente, de modo que o jornal ia parar na mesa do dono do hotel, que era seu amigo. Assim, nem os funcionários do hotel sabiam o que se passava. E o dono do Haus Holub guardava o dinheiro para meu avô pegar quando, efetivamente, fugisse da Alemanha. E assim não deixaram rastros, o que seria um perigo para quem soubesse de algo, inclusive para o amigo.

Numa época, lembro de ver meu pai com uma infinidade de artigos de jornal e revistas sobre a mesa do escritório com tudo o que mencionasse uma tal empresa que produzia licores. Fazia muitos cálculos financeiros. Queria mensurar o valor de um invento: uma receita de licor que continuava a gerar lucros para a empresa, inclusive depois de ter demitido a pessoa que a criou. Acabou estudando questões do Direito para o processo aberto pelo inventor. Seu trabalho foi elogiado nos autos pelo juiz, pela qualidade do laudo apresentado. Lembro-me do orgulho da filha ao ler aqueles elogios ao trabalho do pai.

Mais curioso foi acompanhá-lo tentando descobrir por que pacientes internados no Hospital das Clínicas com insuficiência renal morriam de pneumonia. Estudou o ciclo de vida da Legionella pneumophilia. Descobriu a temperatura em que essa bactéria se reproduzia e partiu para investigar possíveis locais onde essa condição existia. Era na tubulação do aquecimento central do hospital. Sua proposta de desligar esse aquecimento, e instalar simples chuveiros elétricos no lugar, foi motivo de piada. Demorou. Mas trocaram e as mortes pararam. O caso virou artigo científico.

Um curioso. Um pesquisador a serviço da vida. Que não via limites para a busca de soluções pela via dos livros e de novos aprendizados pela prática, pelas tentativas e erros. Mesmo tendo nascido judeu e se tornado um católico convicto, comprou o Alcorão e lá foi ele tentar a leitura do livro para se aproximar de uma pessoa querida que havia se convertido ao Islamismo.

Pelas gerações de minha família, percebo que muita coisa foi escondida. Às vezes, dos próprios membros da família. Estratégias para aprender a viver e a cuidar uns dos outros. Por mais estranho que possa parecer. A vida não ė sempre luz. A sombra caminha junto. 

Em minha vida, percebo vários traços de minha herança, presentes na maneira como tenho enfrentado muitas situações. O medo, frequentemente presente, mas também a criatividade e o bom humor. Assim como a certeza de que tenho, sempre, algo precioso a aprender. Como as enchentes na casa onde morava, os dois acidentes de carro, o sequestro.  E tantas outras, menos dramáticas, mas não menos ricas de oportunidades para aprender coisas. E aprender a ser a pessoa que sou. 

Neste dia, envio ao universo um agradecimento aos Pais. A todos aqueles que inspiram suas filhas, seus filhos. E, certamente, uma homenagem ao meu Pai.  E ao dele, que não cheguei a conhecer. E também aos que vieram antes.