Domingo passado foi Dia dos Pais. Minha homenagem foi silenciosa. Reli o post escrito neste blog, há exatos três anos, quando ainda estava em processo de luto. E refleti sobre o que se seguiu de lá para cá. Interna e externamente. Quantos amigos perderam seus pais, sogros. Muitos cuidaram (ou estão cuidando) de seus pais idosos. Alguns perderam irmãos e até filhos nesse período. Pude estar com alguns deles nesse pedaço do caminho. Aprendi com a morte do meu pai o quanto é importante sentir-se acompanhado nesse momento. A presença, conversas ou mensagens de vários tipos podem ser um presente: fazer com que nos sintamos parte de algo maior, de uma comunidade, onde todos, mais cedo ou mais tarde passam por perdas como aquela. Um elo para além do que palavras podem expressar. Uma perda e um ganho simultâneos. Por outro lado, para além dessa acolhida recebida das pessoas que nos acompanham nesse momento, há um trabalho a fazer. Um trabalho interno. E intransferível.
Como parte desse trabalho, usei a escrita como instrumento, como em tantas outras transições de vida. A escrita pode ser de enorme ajuda nesse trabalho do luto. Percebo que meu primeiro post sobre esse assunto foi em 07/05/2012. Além dos posts nesse blog, acabei escrevendo um capítulo do livro "Entre na Roda!", contando o processo daqueles sete anos de acompanhamento de meu pai, com as estratégias que ia criando para dar suporte aos desafios que apareciam, dos mais diversos tipos. Suporte a ele, a mim, e aos que estavam ao redor, participando daquela rede de cuidado.
Domingo passado, ao refletir sobre o que vivi durante o luto, acabei me lembrando do material de um congresso que participei muitos anos atrás sobre o tema do acompanhamento nas mais diversas situações de vida e áreas de atuação, profissional ou não (
L´accompagnement et seus paradoxos: questions aux usagers, practiciens, scientifiques et politiques). Na ocasião, interessava-me o acompanhamento da formação dos professores por meio das Rodas de partilha. Foi sobre isso que fiz minha apresentação no congresso. Lembro-me de algumas que assisti, marcantes. Naquele domingo, vasculhando nos Anais, deparei-me com o texto "Transições de vida e trabalho de luto", apresentado por Danièle Renault, da Universidade François Rabelais de Tours. Esse texto me fez boa companhia na homenagem silenciosa e retomada do que vivi. Encontrei ali elementos para uma melhor compreensão do que ela chama de 'trabalho do luto', e de seu acompanhamento, oferecendo um olhar sobre as experiências desse período como experiências formativas, no sentido que nos convidam a mudar de olhar sobre nós mesmos, sobre os outros, e sobre o mundo.
Esse trabalho de luto faz uma ligação entre o passado e o futuro. Ele permitirá a integração do passado, como presença interior, com o sentido
que cada um dará à sua própria história e aos acontecimentos que a
construíram. A questão do sentido é essencial a esse trabalho, diz a autora. Viktor Frankl, já citado neste blog, certamente concordaria. E essas ligações de sentido, na história de vida, ligando o passado, o período de transição de vida, que é o luto vivido de maneira presente, e no presente, permitirão a continuidade da vida, com novos projetos, também preenchidos de sentido.
Tempo é a palavra que rege a fase do luto. Há etapas, mas os caminhos são sempre diferentes, pois dependem, ao mesmo tempo, da relação única que a unia a pessoa àquela que se foi, seus recursos internos (sua capacidade de fazer face, sua relação ao mundo) e externos (seu meio familiar e sócio-profissional). E tempo é algo escasso na vida de nossa sociedade atual. "Quem tem o tempo dar um tempo hoje? A indisponibilidade de cada um contribui, certamente, à inflação de demandas da ajuda de profissionais", diz a autora.
Um trabalho de compreensão daquilo que ela está a viver nessa fase de transição de vida é uma das necessidades da pessoa em luto. Mas também o sentimento de ser compreendido. "Ter atravessado essa prova que o outro vive parece ser importante em matéria de acompanhamento, pois ter sido 'tocado' onde o outro será 'tocado' cria um espaço comum que permite o encontro". Há uma 'função de suporte', exercida por familiares e também pelo meio social, como pelos amigos. Esse suporte social permite romper um isolamento e restaurar ligações sociais, muitas vezes abaladas em situações de crise, cuja elaboração se dá também na interação com os outros.
Danièle destaca também três estratégias de acompanhamento de pessoas na fase do luto, para ajudá-las a reconstruir sua identidade, reorganizar sua vida material, social ou afetiva, podendo ser complementares ao acompanhamento da família e amigos.
A primeira é um
acompanhamento individual, onde a pessoa poderá exprimir seus sentimentos sem o medo de ser julgada, sem que o que diga chegue às pessoas de sua família, por exemplo, podendo reconhecer suas emoções e sentimentos, redefinir sua relação à pessoa perdida, ao mundo e a si mesma.
A segunda é um
grupo de suporte. Um grupo de pares para trocar experiências sobre a mesma problemática, coordenado por um profissional. No caso desses grupos, ninguém está só a viver o que vive e nem está lá, unicamente, para receber ajuda, mas também para participar no suporte dos outros membros do grupo, o que em si dá uma nova dimensão ao que ela vive no luto, e na experiência do grupo.
A terceira é ter uma
obra como testemunha, isto é, trabalhar sobre um objeto-mediador (escrita, pintura, escultura ou desenho, como o de mandalas). Uma obra a ser depositária das emoções, dos sentimentos e do vivido. O contato com esse objeto-mediador, entre a pessoa e sua dor, permite que ela 'se coloque em ação', enquanto trabalha sobre a matéria, criando um espaço transicional.
Percebo que meu trabalho de luto se deu em espiral, redimensionando a cada nova volta (e a cada novo texto), os sentimentos e os sentidos extraídos, ampliando-os para novas maneiras de enfrentar perdas. Não só pela morte ou afastamento de pessoas, mas também de situações de vida, como a da vitalidade física dos anos da juventude. Estamos a morrer um pouco a cada dia.
Entretanto, podemos olhar para a vida, e para a morte, de maneira diferente. Podemos estar a construir, um pouco a cada dia, uma grande obra (também trabalhosa, como tudo de valor): uma imensa LIBERDADE, no sentido que lhe dá Viktor Frankl: a de poder escolher nossa atitude ante qualquer circunstância dada.